O Humanismo Existencialista de Jean-Paul Sartre


  1 - O EXISTENCIALISMO COMO FILOSOFIA DA CRISE  
"A volatização progressiva da idéia de Deus e a divinização deformadora da idéia do Homem deram nesta visão falseada das coisas, responsável, no domínio profundo da inteligência, pela crise da civilização contemporânea". Estas palavras lapidares, com que o Pe. Leonel Franca sintetiza toda a etiologia da "Crise do Mundo Moderno"(1) são absolutamente válidas para a explicação do Existencialismo como filosofia da crise, por que nascida sob o signo fatídico de duas profundas crises; a crise da pensamento filosófico ocidental e a crise da própria civilização contemporânea.
A primeira, que teve início em fins do século XIX, está representada pela Crise do Racionalismo. Este se impusera como concepção mecanicista ou logicista do Universo, expressa em soberbos sistemas filosóficos que, a partir de Descartes, dominaram o pensamento ocidental durante muitos anos. As Absolutização da Razão, que em Hegel identificaria o racional com real, haveria, entretanto, de ceder lugar a uma nova realidade cultural, marcada pela ausência do Absoluto e pela derrocada dos grandes sistemas filosóficos tradicionais. A ciência positiva, que preenche o espaço vazio deixado pela filosofia especulativa, negará o vigor causal da concepção mecanicista do Universo, já admitindo um certo grau de indeterminação nos fenômeno, cujo futuro comportamento apenas pode-se prever através de métodos estatísticos fundados na lei das probabilidades. Por outro lado, a rígida divisão dicotômicado pensamento filosófico entre idealismo e realismo mantenha o mistério da existência humana "entre parênteses", o seu estudo a plano secundário. E o próprio homem é diversificado, pelas eliminação de seus aspectos subjetivos, em virtude de se lhe aplicarem os métodos das ciências exatas. Isto evidenciava o que Husserl denominou de "Crise das Ciências Européias".
A crise das ciências, entretanto, era apenas projeção de uma crise maio: a crise da civilização ocidental. Com efeito, o império da razão, que a Revolução Francesa julgara institucionalizado no "nouveau regime", cuja expressão mais altas era o culto da Humanidade e a crença numa era de justiça e progresso, cede lugar a uma realidade histórica estigmatizada pela guerra, no plano internacional, pela hipertrofia do poder estatal, pela radicalização do mundo no binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento e pelo conseqüente cepticismo do homem diante dos valores tradicionais de nossa civilização cristã.
Face à frustração causada pela disparidade entre as mistas expectativas e as desoladoras realidades, só restariam ao homem um dilacerado sentimento de angustia, temor e desespero. E assim, o "Nada tomava na transcendência o lugar deixado vago pela Razão e por Deus (2).
Despojado, tão violentamente, da crença na razão e das artificiosas roupagens conceituais com que o pan-idealismo germânico lhe revestira o espírito, só restaria ao homem do século XX dobrar-se sobre si mesmo, imergindo na própria subjetividade e buscar na finitude da quotidiano aquele angustiado ponto de reflexão que lhe centraria o pensamento no mistério da vida e da existência.
É preciso voltar "sentimento da vida" dirá Dilthey é preciso voltar as coisas mesmas – "Zu den Sachem Selbst" dirá Husserl; é preciso dissolver a tradicional dualidade epistemológica sujeito-objeto na unidade vivencial da correlação fenomenológica consciência – mundo. Deste modo, ao "sujeito puro" dos neo-kantianos, mais tarde hipostasiado na "Idéia absoluta" de Hegel, sobrepõe-se agora, o sujeito concreto, em sua dramática singularidade, historicamente engajado e comprometido com problema da vida, do mundo, de seu próprio projeto existencial da própria humanidade.
A descoberta da existência, o estudo de seu caráter contigente e irracional constituirão a dramática experiência filosófica que o homem deste século de crise rotulará com o nome sugestivo de "Existencialismo", para expressar e enfatizar o seu compromisso histórico com mistério da vida e o "engagement" resultante da situação fática do seu "Ser no mundo". Esta situação, para todos os existencialistas, desde Kierkegard e Gabriel Marcel a heidegger e sartre, trará a marca inconfundível de um desespero e angústia existências, que os dois primeiros procurarão superar com o sentimento da fé e do amor e os dois últimos com uma "ataraxia" digna dos estóicos, com que o homem aceita o determinismo heideggeriano de sua condição teológica de um "ser-para-a-morte" (Sein-Zum-Tode).
 2 - CARATER GERAL DO EXISTENCIALISMO
O existencialismo, enquanto filosofia da crise e por suas próprias origens Kierkegaardianas, deve ser historicamente entendido como um complexo de doutrinas eminentemente antirracionalistas ou, segundo Gabriel Marcel (3), como uma reação anti-hegeliana. Com efeito, desprezando o discurso especulativo da metafísica e o raciocínio frio das ciências positivas, o existencialismo vai buscar na "intuição" de Bergson e na fenomenologia de Husserl o método ou caminho que nos conduz "de retorno as coisas", à existência individual concreto, como algo primordial, misterioso, irredutível e anterior à essência. Existência como símbolo de oficina e de arena onde o homem forja o seu projeto e trava a batalha quotidiana do seu próprio destino. Daí Jolivet conceituar o existencialismo como "o conjunto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objetivo a analise e a descrição da existência concreto, considerada como ato de uma liberdade que se constitui afirmando-se e que tem unicamente como genese ou fundamento esta afirmando de si".(4)
2.1 - CARACTERÍSTICAS COMUNS
Embora diversas, as filosofias existencialistas temem comum as seguintes características fundamentais:
    • existência como objeto de investigação e de modelagem do projeto humano em permanente "devir";
    •  a vivência existencial, como fonte de angustia e fundamento de uma antropologia filosófica que, para os existencialistas cristãos, aponta o caminho da intersubjetividade (comunhão com os homens) e da transcendência (comunhão com Deus) e, para os existencialistas ateus, conduz à morte, à náusea, ao nada;
    • o homem como liberdade e subjetividade enquanto artífice de seu próprio projeto existencial, como realidade aberta aos outros e ao mundo;
    • finalmente, a dissolução do dualismo sujeito-objeto inerente à teoria clássica do conhecimento, na unidade interior de uma vivência que se exprime no amor ou na angustia, considerada esta como consciência da finitude do homem, da sua gratuidade existencial e do seu ser para a morte.
 3 - O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO
3.1 - Sumário do Humanismo Sartreano
3.1.1 - As Críticas ao Humanismo de Sartre
Sartre opõe-se às críticas que lhe fazem cristãos e marxistas, ao acusarem-no de:
    • isolar o homem trancando-o numa subjetividade egoístas e burguesa;
    • incitar o homem ao quietismo num mundo absurdo totalmente desprovido de sentido;
    • acentuar o lado sórdido da existência humana;
    • libertar o homem de quaisquer condicionamentos morais, pela eliminação de Deus que é a fonte de todas os valores.
A Resposta de Sartre como Definição de um humanismo Existencialista:
    • à critica do isolacionismo, Sartre responde com a tese da solidariedade universal, pela universalidade da condição humana, que define os limites "a priori" de sua situação no mundo, e pela universalidade do projeto humano pelo qual, ao se escolher, o homem escolhe a própria humanidade;
    • à critica do quietismo, Sartre responde com a afirmativa de que só há realidade na ação e de que o homem é projeto em permanente "devir", projeto que se vive subjetivamente mas que se supera a si próprio, na perseguição incessante de fins transcedentes;
    • à crítica de pessimismo, por ressaltar o lado sórdido da vida, responde ele com a tese da "dureza otimista" e que consiste em responsabilizar o homem pelo que ele é, como soma de todos os seus atos, concluindo que "não há doutrina mais otimista visto que o destino do homem está em suas mãos".(5)
    • à crítica de que "sem Deus o homem está livre para ser o que quiser", responde Sartre com o princípio moral kantiano, segundo o qual deve o homem agir de modo que possa a humanidade se regular pelos seus atos; e, assim, Sartre atribui ao homem a condição de um legislador sobre um mundo moral que é absolutamente seu e onde não existem "sinais" que lhe orientem a opção.
4 - O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO (Desenvolvimento do tema)
 4.1 - Ontologia Fenomenológica e Ateísmo
O humanismo existencialista de Sartre desenvolve-se sobre as diretrizes teóricas de uma ontologia fenomenológica de uma teologia atéia. As metafísicas tradicionais opuseram o ser às aparências, as essências, ao fenômeno. Com Husserl, esta dualidade se dissolve na unidade de uma ontologia fenomenológica cujo objeto, o ser, se dá no fenômeno e o fenômeno, como única realidade existente, está lastreado de pensamento, de "logos", de "intentio" no sentido brentaniano.
Partindo deste princípio, Sartre distingue no fenômeno o "ente en soi", o ser do mundo material, absolutamente idêntico a si, sem potência, porque "tout este en acte" (6). O ente entretanto é absurdo, pois não tem em si nem fora de si a sua razão de ser.
Neste mundo material do "ensoi", hermético em si, sem liberdade, existe o "etre pour-soi", o ser especificamente humano. Ele, o homem, que é consciência de si para-si, constitui o objeto do humanismo existencialista, como ser cuja existência precede à essência, como projeto que se escolhe a si próprio e se realiza num "devir" de criadora auto-superação.
Diz Bochenski (7) que o pensamento de Sartre gira em torna de problemas teológicos, embora em sentido ateu. E o próprio Sartre o confirma, quando declara que "o existencialismo não é senão um esforço para tirar todas as conseqüências duma posição atéia coerente"(8). E esse dedutivismo lógico de um ateísmo apriorístico constitui a base do humanismo sartreano. Já em sua obra "Le Diable et le Bom Dieu" dissera Sartre: "se Deus existe, o homem é nada; se o homem existe ... Deus não existe". Esta irredutibilidade entre o homem e Deus explica a metafísica do absurdo, em que se fundamenta o humanismo existencialista. Evidentemente, "senão há um ser necessário para explicar a existência, a contingência é o absurdo; tudo é gratuidade perfeita, tudo é demais e o homem, o próprio homem, nasce sem razão, subsiste por fraqueza e morre por acaso"(9) diz Sartre. E nisto reside a origem da "náusea" do abandono e do desespero.
 
4.2 A Existência Precede a Essência
"Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência; um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito. E que este ser é o homem como diz Heidegger, a realidade humana" (10). Essa prioridade da existência sobre a essência tem sua explicação na ontologia fenomenológica de Sartre. Evidentemente, se as essências são a racionalidade imanente do ser, enquanto sentido "a priori" que o dinamismo do espírito atribui ao mundo fenomênico, elas só existem na e para a consciência, o "pour soi". Sendo assim, a essência humana para anteceder à sua existência, necessitaria de um "Pour-soi" absoluto que a pensasse. Daí afirmar que "não há natureza humana visto não haver Deus para a conceber". "O Homem primeiramente existe se descobre, surge no mundo e só depois se define".(11)
4.3 O Projeto Humano e o Caráter Universal da Escolha
O homem, como o concebe Sartre, primeiramente não é nada, porque não é definível ou concebível "a priori". A realidade primeira é a sua existência, seu ser-no-mundo, situação fática que ele descobre e assume conscientemente. Só depois então é que se definirá, através de um projeto humano, concedido em sua subjetividade individual, projeto cuja realização plasmará o tipo de homem que ele livremente escolher e se propõe ser.
O projeto humano, entretanto, não se contém nos limites da subjetividade. "O homem está constantemente fora de si mesmo... projetando-se para fora de si... perseguindo fins transcedentes", diz Sartre (12). Mas "como não há outro universo senão o universo humano", o projeto existencial que formulamos para nós transcende os limites da subjetividade e adquire o caráter de uma escolha universal por nos compromissar e responsabilizar com a própria humanidade. É que "ao escolher-se a si próprio o homem escolhe todos os homens", (13) pois ele pre escolhe o melhor que também o é para toda a humanidade isto Sartre denomina "o caráter absoluto do compromisso qual cada homem se realiza, realizando um tipo de humanidade. Tal fato implica numa responsabilidade muito grande para o mem porque ele envolve toda a humanidade.
4.4 Angústia e Responsabilidade na Liberdade Moral da Escolha
Aqui também, o ateísmo desempenha papel importante comonpedra angular do humanismo existencialista de Sartre. "Se não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento" (14). Se, entretanto não há uma moral ou valores apriorísticos porque "não há consciência divina infinita e perfeita para pensá-los, e estamos sós, sem justificativas para os nosso atos, porque, sinais" (15) que o balisem existencialmente e orientem. Estamos condenados a ser livres. Daí concluir Sartre que "o homem está condenado a cada instante a inventar o próprio homem". (16)
Nestas condições, o homem se sente esmagar sob o da responsabilidade de uma escolha feita sob condições de luto desamparo e abandono, o que o leva ao desespero.
4.5 A Moral Existencialista e os demais Valores
"Se suprimi o Deus Pai, é bem necessário que alguém invente os valores", diz Sartre (17). E inventar os valores significa para ele dar à vida, que não tem sentido "a priori",o humanismo clássico, que torna o homem como fim e valor superior pelo seu humanismo existencialista, em cada um se escolhe livremente sem se referir a valores. Esta escolha, porém, não é gratuita, pois a escolha moral para ele se assemelhe à constatação de uma obra de arte, a qual não se inspira em regras estabelecidas "a priori".
O projeto humano traz portanto a marca essencial da liberdade, pois o homem se faz escolhendo a sua moral. Como, porém, esta escolha define um tipo de projeto que é válido para todos os homens e épocas, eu devo agir segundo o axioma da moral kantiana, que eleva os meus atos à condição de paradigma de ação para toda a humanidade.
A liberdade moral da escolha rejeita qualquer idéia de determinismo, pois não existe uma natureza interior ao homem nem valores fora dele para preestabelecer rumos necessários à ação. Assim, ninguém nasce covarde ou herói, diz Sartre, (18) mas cada um se faz conforme sua livre opção, tornando-se responsável pelo que é. Esta liberdade e reponsabilidade moral de opção caracteriza o que Sartre chama de "dureza otimista", a qual repugna aos que se refugiam na "má fé" de um pseudo-determinismo, dissimulando a autenticidade do livre compromisso. (19)
4.6 O "Cogito" como Via para a Intersubjetividade
Temos de partir do "cogito" ou subjetividade, diz Sartre, por ser ele o único meio de atingirmos a verdade e salvar o homem como sujeito, evitando torná-lo objetivo.
Pelo "cogito", atingimo-nos a nós próprios e aos outros que se nos apresentam como condição de nossa existência, "como uma liberdade posta em face de mim"(20). Descobrimos, assim, o mundo da intersubjetividade.
Não temos com os "outros" uma comunidade de natureza humana, uma essêncial universal, mas temos uma "universalidade de condição", que se define pelos limites "a priori" que caracterizam a nossa situação fundamental no universo: e todo projeto humano, sem prejuízo de sua individualidade, tem um valor universal porqur persegue objetivos relacionados com a superação ou eliminação desses limites. Daí por que, escolhendo-me, eu construo o universal e realizo o absoluto, através de um projeto universalmente válido porque inteligível a todos os homens.
5. CRÍTICA AO HUMANISMO EXISTENCIALISTA DE SARTRE
O existencialismo de Sartre traduz, na angústia e no desespero, a crua dramticidade de uma civilização em crise, que perdeu o sentido da transcedência e se abismou, conseqüentemente, na absurda gratuidade de sua própria finitude. Nesta filosofia, dirá Bochenski, "podemos ver a expressão de um homem sem fé sem família, sem amigos e sem finalidade na vida" (21).
Fiel às suas raízes kierkegaardianas, a filosofia existencial de Sartre expressa a revolta anti-intelectualista do pensamento moderno contra aquela visão romântica e otimista do mundo com que a euforia racionalista do Renascimento plasmou o perfil ideológico da cultura ocidental.
Como o Filósofo dinamarquês, Sartre vive o dram de sua finitude e do "nada que circunda a sua contigência". Falta-lhe, porém, o sentimento daquela fé abraâmica que, em Kierkegaard, é ponte lançada sobre o abismo da existência, ligando o finito ao infinito, a subjetividade à Transcendência. Daí por que a angústia em Kierkegaard é caminho que eleva o homem a Deus, "par 1 ‘angoisse vers la hauteur" (22), e em Sartre é sentimento de abandono e solidão, em um mundo onde o homem assume a inteira responsabilidade de projetar e criar a sua própria essência, sem valores "a priori" que lhe alisem e fundamentem a decisão.
Paradoxalmente, o humanismo ateu de Sartre e sua própria ontologia estão centradas na idéia de Deus; não do seu Ser mas do seu não-ser. O nada-de-Deus é, assim, um postulado básico, apriorístico, necessário, universal, que fundamenta a absurdidade do ser, da existência, das essências, do homem, dos valores, do absoluto.
Parodiando Spinosa poder-se-ia dizer que Sartre desenvolve um filosofia atéia "more theológico demonstrata". Seu pensamento desenvolve, paradoxalmente, princípios de uma teologia atéia como base de uma ontologia fenomenista.
Situando-se o ateísmo de Sartre no contexto de toda a sua filosofia existencial, conclui-se que ele se reveste de três características essenciais: apriorismo, necessidade e universalidade.
Quanto ao caráter apriorístico da negação de Deus, o próprio Sartre o confessa na seguinte passagem de sua obra "Sutuation": "O ateísmo de M. Naville não é a expressão de uma progressiva descoberta, mas uma clara tomada de posição "a priori" perante um problema que excede infinitamente a nossa experiência... Essa é a minha solução (23).
Comentando o ateísmo apriorístico de Sartre, diz Romano Resek que "a recusa de Deus (que, para Sartre, poderia dispensar argumentos...) satura e orienta toda a sua obra, na qual ele tenta provar a possibilidade de suprimir Deus e até construir sobre essa ausência um sistema coerente do homem e do mundo"(24).
Ocorre, porém, que uma tese, axioma ou princípio apriorístico nada provam, pois, "gratis affirmatur gratis Negatur".
Como explicar-se, porém, o caráter apriorístico do ateísmo sartreano? Certamente como um "estado de alma", segundo Merleau Ponty. Como uma irrupção subjetiva de traumas ligados a uma infância religiosamente neutra, a uma educação deformadora de Deus: "eu precisava de um Criador, davam-me um Grande Patrão", declarava Sartre em seu artigo "Gide Vivant". (1951)
No caso, o ateísmo de Sartre adquire o caráter de um "determinismo psicológico", pelo que se torna patologicamente necessário. A esta necessidade empresta ele características metafísicas que fundamentam a sua ontologia e a sua antropologia filosófica. Ontologicamente, "o ser é sem razão, sem causa e sem necessidade", declara Sartre em "L’être et Le Neant" (25). Mas porque o ser é sem razão e sem causa? Porque necessitaria de uma essência preexistente, o eu implicaria na necesidade de um "Artífice" para lhe conceber tal essência, explica ele com o exemplo do corta-papel, "cuja essência – quer dizer o conjunto de receitas e características que permitem produzí-lo e defini-lo precede a existência". E porque não se admitir esse Artífice, em cuja mente preexistiriam as idéias de tudo como arquétipos eternos segundo a bela concepção augutiniana da criação?
A resposta nós a temos na explicação antropológica de Sartre para a não existência de Deus – "Se Deus existe, o homem é nada, se o homem existe, Deus não é ..." (Le Diable et lebon Dieux). Para ele é, portanto, humanamente necessário que Deus não exista. Cumpre destruí-lo, para que de suas cinzas possa nascer ou renascer a figura apolínea do homem sartreano, herói e semi-deus que se basta a si próprio, que projeta e cria a sua própria essência. Tal concepção configura um humanismo anti-humano, pois o homem, na ânsia de ser um Deus impossível um "etre-en-soi-pour-soi", termina sendo um nada, "uma paixão inútil" segundo o próprio Sartre.
O ateísmo de Sartre reveste-se, também, de um caráter universal, pela amplitude de suas deduções, pois ele próprio é quem declara que "O existencialismo não é senão um esforço para tirar todas as conseqüências duma posição atéia coerente". (26) Ocorre, porém, que sendo incoerente o seu ateísmo, porque apriorístico, incoerentes também o são as suas conseqüências.
Em primeiro plano, avulta a incoerência de uma Ontologia fenomenista, pois reduz o ser do fenômeno a um fenômeno de ser, o que representa nada. Daí Jacques Maritain dizer que o equívoco original e irrmediável de Sartre está em ter ele permanecido no âmago da fenomenologia, pretendendo alcançar aí o ser, pois, "pelo simples fato que a fenomenologia coloca o real extramental entre parêntesis, exclui a ontologia"(27).
Outra é a incoerência da "universalidade da condição humana" sem a universalidade de uma natureza humana que lhe sirva de suporte metafísico. Sem esta natureza, a sua tese da "solidariedade universal"cai por terra ante a evidência de um isolacionismo hermeticamente enclausurado na subjetividade do "cogito" cartesiano. Mesmo porque fora deste "cogito cartesiano todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina de possibilidade que não está ligada a uma verdade desfaz-se no nada"(28). Por outro lado, não aproveita a tese da universalidade individual centrada na idéia de que a nossa escolha envolve toda humanidade, por sempre escolhermos o que é bom para todos. Na verdade, se o valor da escolha está em escolher livremente, "só nos resta guiar-nos pelo instinto", pois não existem sinais que nos balizem os atos e "nenhuma moral geral pode indicarmos o que fazer" (29) a nossa escolha será absolutamente individual como projeto, não podendo, por isso mesmo, sob pena de incoerente contrasenso, adquirir o caráter universal que Sartre lhe empresta.
Esta conclusão que vimos de fazer é premissa que nos conduz à conclusão de outra incoerência do humanismo sartreano. Trata-se de sua moral de ação por ele concebida segundo o orgulhoso estilo da moral kantiana: "Tudo se passa como se, para todo homem, toda a humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz e se regulasse pelo que ele faz" (30). Pura falácia, pois, para mal de seus pecados, o próprio Sartre decalra que "estamos sós e sem desculpas", sofrendo em cada decisão uma angústia, pois se Deus não existe, não encontramos diante de nós valores que nos legitimem o comportamento. E, assim, "fica o homem abandonado, já que não encontra em si nem fora de si uma possibilidade a que se apegue" (31).
Vemos, aqui, ruir por terra a decantada moral sartreana, constituindo, assim, uma absurda incoerência a sua afirmativa de que "só há esperança na ação". Que esperança? Esperança na angústia e no abandono é desespero.
Para sair deste dilema em que o envolveu uma absurda moral de ação "ex-nihilo", porque sem motivações "a priori", Sartre formula, com inegável habilidade, a sua doutrina da liberdade: o homem é absolutamente livre porque sua ação se desenvolve sem condicionamentos externos nem internos. Tratando-se de uma liberdade sem "antes" (motivação) nem "depois" (finalidade), ela passa a ser um fim supremo em si, pois justifica a ação pela ação. E assim pensa ele ter respondido à crítica de pessimista, que lhe fazem, declarando que "não há doutrina mais otimista visto que o destino do homem está em suas mãos" (32).
É o "duro otimismo" do existencialista que assume a responsabilidade dos atos em que projeta a sua essência. "Duro otimismo", concordamos nós, pois toda ação sem motivação é absurda, como absurda e anti-humana é a liberdade quando a escolha em que ela se realiza tem o caráter determinista de não poder ser evitada e a gratuidade de uma opção às cegas, porque sem critérios que a justifiquem. Finalmente, sobressai na antropologia filosófica de Sartre a sua absurda concepção do homem como um ser que primeiramente é ou existe, surge no mundo, descobre-se, para depois escolher a sua essência, tentando realizá-la como um auto-projeto em permanente "devir". Tal concepção, porém, envolve uma radical contradição frente à filosofia aristotélico-tomista, pois o ser que é (ser-existência) sem ser o (être-en-soi) da ontologia sartreana, um ser hermético em si mesmo, absolutamente idêntico a si, sem nenhuma potencialidade, porque "tout est en acte".
Se, porém, o homem, na ordem ontológica do ser, apenas, é o que é, sem nenhuma outra possibilidade, já é portanto tudo não podendo assim vir-a-ser. Neste caso, como pode um ser com tal estrutura ôntica projetar-se fora de si, buscar realizar uma essência que o transcende? Pela "subjetividade", responde Sartre cartesianamente, opondo ao mundo rígido e imóvel do "en soi" o mundo interior do "pour soi", onde se situa e se realiza existencialmente o ser especificamente humano, como consciência e liberdade cuja essência consiste no escolher o tipo de homem que cada um tiver projetado ser.
Embora Sartre não chegue a tanto, o homem existencialista que ele concebe tem, como vemos, a paradoxal e ambígua situação de um ser ao mesmo tempo heracliano e parmenidiano. Heracliano como "pour soi" – consciência e liberdade que se realizam na ação, no projetar-se fora de si, na vertiginosa perseguição de fins transcendentais. Parmenidiano pela condição fátida de sua primeira e original maneira de ser no mundo, absolutamente idêntico a qualquer outro "en soi", cuja ausência de potencialidade o equipara ao "Ato Puro" aristotélico-tomista (Deus). Isto implica envolver o homem e tudo o mais numa percepção monista do Universo, onde a pluralidade dos seres se reduz à unidade ontológica de ser-em-si. Este será necessariamente uno, porque tem como única determinação o existir e absolutamente imóvel, porque sem potência.
Ser e não-ser, eis o homem existencialista de Sartre. Um nada de essência que projeta a essência de nada, porque "ex nihilo".
Na vã tentativa de explicar estes aspectos contraditórios de sua ontologia, Sartre inspira-se mais uma vez na sua teologia atéia, declarando que o homem quer converter-se num em-si que seja seu próprio fundamento, "causa sui", e, portanto, um "em-si-para-si". O homem qeur tornar-se Deus; mas como Deus é impossível, pois um em-si-para-si é uma contradição, "o homem é uma paixão inútil".
Se Sartre houvesse sido fiel ao método fenomenológico de Husserl, ao postulado básico de que o fenômeno está lastrado de pensamento, de "logos" como se infere da própria etimologia do termo (fenômeno+logia), teria ele certamene transcendido o mundo das aparências sensíveis e intuído, no cerne do fenômeno, o "Logos" Universal e Único, o próprio "Vebum Dei" que dá sentido causal às coisas humanas. E, assim, ao invés de reeditar o mitológico Prometeu, na pessoa do homem acorrentado a um mundo e destino absurdos, teria ele encontrado Cristo, alfa e ômega da História, em cuja pessoa Deus se huamnizou para divinizar o homem.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) FRANCA, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 4ª ed. Agir, p. 141. (2) JOLIVET, Régis. A Doutrina Existencialista. 1961, Livraria Tavares Martins, Porto, p.21. (3) RESEK, Romani. Deus ou Nada. Ed. Paulistas, 1975, p.147. (4) JOLIVET, Régis. Op. cit. p.27. (5) SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. Apud. Os Pensadores. Vol. XLV, Abril Cultural. p. 09 a 28. (6) BOCHENSKI. A Filosofia Contemporânea Ocidental. EDUSP, 2ª ed., 1975. (7) BOCHENSKI. Op. cit. p. 165 e 166. (8) SARTRE, J. P. Op. cit. p. 09 a 28. (9) RESEK, Romani. Op. cit. p. 149. (10) SARTRE, J. P. Op. cit. p. 09 a 28. (11) Ibidem, p. 09 a 28. (12) Ibidem, p. 09 a 28. (13) Ibidem, p. 09 a 28. (14) Ibidem, p. 09 a 28. (15) Ibidem, p. 09 a 28. (16) Ibidem, p. 09 a 28. (17) Ibidem, p. 09 a 28. (18) Ibidem, p. 09 a 28. (19) Ibidem, p. 09 a 28. (20) Ibidem, p. 09 a 28. (21) BOCHENSKI. Op. cit. p. 165 e 166. (22) WAHL, Jean. Etudes Kierkegaardiennes. Librairie Philosophique J. Vrin, Deuxieme Editair, 1949, p. 210. (23) RESEK, Romani. Op. cit. p. 168. (24) Ibidem, p. 169. (25) Ibidem, p. 188. (26) SARTRE, J. P. Op. cit. p. 09 a 28. (27) MARITAIN, Jacques. A Filosofia Moral. Agir, 1973, p. 210. (28) SARTRE, J. P. Op. cit. p. 09 a 28. (29) Ibidem, p. 09 a 28. (30) Ibidem, p. 09 a 28. (31) Ibidem, p. 09 a 28. (32) Ibidem, p. 09 a 28.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BOCHENSKI. A Filosofia Contemporânea Ocidental. EDUSP, 2ª ed., 1975. FRANCA, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 4ª ed., Agir. JOLIVET, Régis. A Doutrina Existencialista. Livraria Tavares Martins, Porto, 1961. MARITAIN, Jacques. A Filosofia Moral. Agir, 1973. RESEK, Romani. Deus ou Nada. Ed. Paulistas, 1975. SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. Apud. Os Pensadores. Vol. XLV, Abril Cultural. WAHL, Jean. Etudes Kierkegaardiennes. Librairie Philosophique J. Vrin, Deuxieme Editair, 1949. 

UNIVERSIDADE  FEDERAL  DO  MARANHÃO
DEPARTAMENTO  DE  FILOSOFIA
José Maria de Jesus e Silva
Prof. Adjunto do Dep. de Filosofia da UFMA  
Trabalho publicado na revista Filosofia em Revista 84.2

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Enfim o projeto existencial

A angústia de ter um sentido. A obra que iremos realizar. No decorrer de nossa existência criamos inúmeros projetos. Isto porque o projeto é uma construção constante, e só termina com a morte.

Em alguns momentos nos enterramos devido a um único projeto, mas esquecemos que não há vida sem sentido, nem existência sem projeto, por isso ele não pode ser único.

Ele envolve nossa liberdade de escolha, nosso estar só, e o reconhecimento da nossa finitude. Ele nos acompanha do início ao fim de nossa existência. Mesmo porque, como nos disse Carl Rogers:

A grande obra do ser humano é a construção da existência.

 
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